Beat narrativo: o que é e como utilizar?
 



Dica de Escrita

Beat narrativo: o que é e como utilizar?

Emilly Garcia


Quando estamos desenvolvendo uma história, seja ela um roteiro ou um romance, muitas vezes damos mais atenção aos grandes acontecimentos, aqueles de alto impacto na trama. Porém, se observarmos bem, veremos que esses acontecimentos resultam de uma sucessão de eventos menores, os chamados beats narrativos. Sobre esse assunto, conversamos com um dos professores do Curso de Formação de Escritores, Arthur Menezes, que é jornalista, educador, roteirista e criador da websérie "Dupla de Dois", a maior websérie universitária do país.

Mas, antes de irmos ao conceito de beat, voltemos um pouco no tempo. Nos anos 60, o linguista Eugene Dorfman, em seu livro "The Narreme in the Medieval Romance Epic" (1969), chamou esses eventos menores dentro da estrutura narrativa de "Narremas", fazendo uma analogia aos fonemas e morfemas. Isto é, os "incidentes marginais", mas não menos importantes, serviriam de suporte aos incidentes centrais. No "Dicionário de Narratologia" (2007), os autores Carlos Reis e Ana Cristina M. Lopes definem o Narrema como a ?unidade mi?nima de uma narrativa, capaz de representar um evento" (p. 270).




"The Narreme in the Medieval Romance Epic" (1969), "Dicionário de Narratologia" (2007), "Story: Style, Structure, Substance, and the Principles of Screenwriting" (edição em Inglês, de 1997) e "Story: substância, estrutura, estilo e os princípios da escrita de roteiro" (2006).


Na década de 1990, quando lançou o livro "Story: substância, estrutura, estilo e os princípios da escrita de roteiro" (edição de 2006 em Português), o professor de escrita criativa, Robert McKee, utilizou o termo "beat" pela primeira vez ao falar das mesmas unidades mínimas de uma narrativa, mas, nesse caso, direcionou a técnica aos roteiros audiovisuais. Dado o contexto, em uma escala crescente, primeiro viriam os beats, depois as cenas, as sequências e, por fim, os atos. Segundo a definição de McKee:

"Um beat é uma mudança de comportamento em ação e reação. Beat a beat, esse comportamento em transformação molda o ponto de virada cena (2006, p. 49)".

Em outras palavras, os beats geram um estranhamento, instigando uma ação ou mudança de comportamento por parte do personagem. Essa ação provoca uma reação, que por conseguinte resultará em um novo comportamento dentro daquela cena. Poderia ser a mulher que tropeça e derruba café no futuro amor de sua vida, o pneu que fura e obriga a família a pernoitar em uma casa mal-assombrada, ou um panfleto levado pelo vento que aterrissa acidentalmente no rosto do personagem, trazendo-lhe boas ideias sobre a resolução de um problema.




Exemplo de beat na cena do filme "E se fosse verdade" (2005), quando um panfleto "teimoso" ajuda o personagem David a tomar uma decisão, e em "Star Wars", quando Luke Skywalker descobre uma mensagem importante ao limpar o robô R2-D2.


De acordo com Arthur Menezes, o conceito de beat está diretamente relacionado ao "como" da história. "Trata-se de intencionalidade e sua utilização pode variar de caso para caso. Sempre escrevo uma cena sabendo responder sobre ela `o quê?` e, invariavelmente, `por quê?`. Mas só em casos específicos sei um `como?` mais detalhado. Em geral, defino no argumento uma série de coisas que vão acontecer na história, e ali já pode haver uma referência ao que posteriormente vai se chamar de beat, mas não necessariamente. Depois, na escaleta, também pode aparecer alguma coisa", explica.

Ele completa trazendo um exemplo prático. "Certa feita, tinha para escrever uma cena em que havíamos previsto o primeiro encontro entre dois protagonistas. Tínhamos o `o quê?` e o `por quê?` bem definidos desde o argumento, mas não havíamos pensado no `como?`. Então, a cena iniciou com ambos perdidos em um mesmo lugar, por motivos diferentes, e nervosos para encontrar o que buscavam, também por motivos diferentes. Foram detalhes que apresentaram características importantes dos personagens, sem que precisássemos contar ao público de maneira professoral e modorrenta. Isso dá leveza à obra. Por outro lado, esses fatores condicionantes justificaram o centro da ação previamente planejado, a saber, um encontro por esbarrão, e, por fim, a própria sequência de eventos acabou sendo uma reprodução intencional de um sem-fim de obras do mesmo gênero, permitindo-nos oferecer um início satírico, dando o tom de que a obra poderia brincar com as outras que vieram antes, com seus padrões e até consigo mesma", conclui.

Para que uma história seja interessante, tenha ritmo e prenda a atenção do leitor, uma boa progressão de cenas é fundamental para causar o efeito desejado no espectador/leitor. Portanto, não basta simplesmente enumerar os eventos: o personagem acordou, tomou café, saiu para trabalhar, retornou, jantou, dormiu. O que envolveu o ato de tomar café naquele dia? O que pode acontecer no caminho de volta para casa?

Se nada provoca a ação e reação dos personagens, a narrativa não avança. Além do "como", Arthur ressalta que é preciso também explicar o porquê. "Retomando a intencionalidade, aqui trata-se do que se quer oferecer. Duas pessoas podem esbarrar e assim encontrarem-se. Esse pretenso núcleo de uma cena pode ser precedido por infinitas possibilidades, desde que explique a desatenção de pelo menos um dos envolvidos no esbarrão. Se escolho a desatenção de ambos, ou de um deles, é claro que reivindico o acaso ou a ação do destino. Se uma das personagens é uma stalker que vigia a vítima e se prepara para simular o encontro, a sensação é outra. Neste caso, é certo que poderemos ver elementos da preparação da stalker, do mesmo modo que os motivos pelos quais a pessoa que será levada ao choque não perceberá o que ocorre. O ponto é que, mesmo para que um simples esbarrão ocorra em tela, há que se explicar a quem assiste: por quê? E mesmo após o esbarrão há de acontecer algo, afinal, a cena provavelmente não se fechará de pronto".

Parando para pensar, não é assim também a vida? Repare na quantidade de pequenas ações que você realiza durante o dia. De forma muito parecida ocorre com o beat narrativo na escrita criativa. Nesse sentido, Arthur sugere detalhes que possam preencher essas "brechas" na vida dos personagens. "Vamos para o clássico toque de mãos sobre os livros, carinhosamente recolhidos do chão após a violenta queda causada pelo esbarrão? Há uma ofensa ou sequência fria de passos de uma das partes? Cada qual vai para um lado? Alguém deslocará o ombro? Podemos pensar no beat também como esse fechar dos poros, tapar os buracos entre as ações que planejamos lá na escaleta. No meu caso, gosto de revisar os roteiros e sugerir detalhes que possam compor essas brechas da vida. Em suma, há muito o que contar entre um ponto de ação e outro", aconselha.

Lembre-se da Jornada do Herói, algo precisa acontecer para que o personagem atenda ao chamado e saia em busca de respostas. E como trazer o beat narrativo do audiovisual para os textos literários? Arthur Menezes dá dicas valiosas. "Escrever é, em boa medida, descrever. Gosto de pensar na dinâmica do personagem com o lugar, com as coisas ao seu redor. Isso ajuda a dar imersão ao leitor, a contar mais sobre a figura que está em cena, sem adjetivar, por exemplo. Então, pensando no chamado à ação, digamos que o pai do nosso herói morreu. Essa notícia será recebida em um escritório. Como é que o portador da notícia acessa essa sala? Precisa chegar derrubando a porta (porque ninguém consegue o acesso de maneira cordial, com a liberação da secretária) ou será convidado a, com toda a tranquilidade, acomodar-se em uma vultosa poltrona, que está ali justamente como materialização da receptividade do sujeito? A maneira como isso será contado diz muito sobre os dois, e sobre o evento, então aqui a maioria dos escritores é capaz de se deter aos detalhes. Mas, e a seguir? Como é que o portador da notícia sai da sala? Quem recebe a notícia apenas olha pela janela ou quebra a sala inteira? Quebrar a sala toda pode implicar em receber um novo decorador, que pode ser o grande vilão, o que possibilita um primeiro encontro. Acho que em muito se parece com o audiovisual, trata-se de responder o "como" as coisas acontecem. Com o acréscimo, neste caso, da necessidade de descrever as pessoas, as coisas, as sensações e tudo mais, assim conseguindo fazer com que o leitor "veja" a obra que está lendo".


 

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